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Crônicas & Artigos

em 01/03/21

Saúde pública e direito do cidadão

Originalmente publicado no jornal O Estado de S.Paulo.
por Antonio Penteado Mendonça

A Grã-Bretanha não tem este problema. Lá existe um rol oficial, que é periodicamente revisto e atualizado, que serve de base para o atendimento médico-hospitalar, incluída a distribuição de medicamentos para a população. Ninguém discute o que está incluído no rol, nem pede o que não está incluído, resolvendo um problema que, no Brasil, começa a adquirir proporções sérias, pela disparidade entre o fornecimento de medicamentos extremamente caros para poucas pessoas, sangrando o combalido orçamento da saúde pública, que fica ainda com menos recursos para atender o grosso da população.

A questão é delicada porque envolve o dever moral de atender o máximo de pessoas com os recursos existentes e o direito individual, garantido pela Constituição, de todo cidadão ter suas necessidades de saúde atendidas.
Saúde pública tem como pedra angular o atendimento do maior número de pessoas possível, garantindo a elas a melhor saúde e qualidade de vida, dentro de um cenário semelhante para todos, no qual as oportunidades de cada um não são exceções, nem se contrapõem ao número de atendimentos, realizados com recursos limitados, orçamentariamente destinados a esse fim.

Na Grã-Bretanha, que tem o melhor, ou um dos melhores serviços de saúde pública do mundo, a regra é clara. Todos têm direito ao que é incluído na lista oficial, ninguém tem direito a mais do que o ali disposto, ainda que exista medicamento mais moderno, com capacidade de cura muito mais elevada do que o constante no rol oficial.

Tanto faz se custa mais barato ou mais caro, o que não está na relação oficial não é fornecido pelo serviço de saúde. Se o interessado desejar, ele assume, particularmente, o custo da aquisição. A premissa básica por trás do desenho é o atendimento ao maior número possível de pacientes, o que pode ser conseguido se houver uma limitação de gastos, não por paciente, mas por procedimento muito caro. O não pagamento desses tratamentos permite a aplicação dos recursos num maior número de procedimentos, o que faz mais justa a divisão dos recursos e, consequentemente, beneficia um número maior de pessoas.

O Brasil também tem um rol oficial de procedimentos, tratamentos e medicamentos, que deveria ser semelhante para todos, mas que, na prática, não é. O fenômeno da judicialização está crescendo acentuadamente nas demandas envolvendo as questões de saúde pública. E onde o quadro fica mais complicado é nas diretrizes da Constituição, que determina que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas” (Art.196). Se o artigo fosse até aí, todo cidadão brasileiro teria direito a tratamento de saúde integral e gratuito, ilimitadamente. Mas o artigo prossegue: “… que visem a redução do risco de doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O acesso universal e igualitário deixa de ser verdade quando alguns conseguem medicamentos caros, para tratamentos específicos, e outros, em função desses gastos, ficam sem acesso a procedimentos básicos, como o rápido atendimento na rede pública de saúde, por falta de recursos para aumentar a capacidade de atendimento.

O fenômeno se repete nos planos de saúde privados, apenas o desenho é um pouco diferente. Neles, as ordens judiciais são cumpridas e os planos assumem os custos dos procedimentos fora do rol oficial, pagando integralmente as despesas decorrentes do atendimento de um paciente em particular. Só que, no momento do reajuste anual do preço das mensalidades, os planos repassam os custos dos atendimentos sem cobertura, rateando a despesa deles decorrentes entre todos os seus segurados.

As duas situações são injustas. Na rede pública, milhares de pessoas deixam de ser atendidas porque parte dos recursos são destinados a atendimentos extraordinários. E, na rede privada, essas despesas são rateadas entre todos os segurados. O problema é que do outro lado está a Constituição e sua interpretação cabe ao Judiciário.

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