Incêndio em Santa Maria e seguro
Originalmente publicado no jornal Tribuna do direito
por Antonio Penteado Mendonça
O incêndio na boate Kiss, no Rio Grande do Sul, é a segunda maior tragédia consequente de fogo acontecida no Brasil. Mais de 230 pessoas perderam a vida e outras terão sérias sequelas permanentes, além dos danos patrimoniais causados pelas chamas.
Não cabe aqui analisar as responsabilidades, mas avaliar se os riscos inerentes à atividade da boate poderiam ser segurados.
Basicamente, o funcionamento de uma boate envolve três tipos de danos para ela própria, seus funcionários e para terceiros, a saber, corporais, patrimoniais e morais. Os três podem ser segurados e o mercado oferece cobertura dentro dos chamados pacotes empresariais ou através de apólices especificamente desenhadas.
Na tragédia gaucha aconteceu um incêndio que matou pessoas que estavam dentro do local que pegou fogo. Como o fogo foi o agente do evento, começo tratando do seguro de incêndio, que dá cobertura para as instalações da própria boate.
O seguro de incêndio é obrigatório por lei para todas as pessoas jurídicas situadas no Brasil. Assim, a sua não contratação, independentemente da ocorrência de um sinistro, implica na possibilidade de uma multa que pode chegar a 10% do valor do objeto segurável.
A garantia de incêndio é a cobertura básica de todos os seguros de edifícios. Para contratar um seguro para um imóvel, é necessário contratar a garantia de incêndio, que indeniza danos decorrentes de fogo, queda de raio e explosão de gás. O seguro de incêndio é um seguro abrangente, que cobre inclusive incêndios de origem criminosa, desde que sem a participação do proprietário ou do responsável pelo imóvel.
Assim, em princípio, o incêndio da boate estaria coberto. A causa do fogo foi a ação irresponsável de um integrante da banda que animava a festa, que acendeu fogos de artifício dentro do estabelecimento. Se o responsável pela boate não tinha conhecimento de que isto seria feito, ele teria direito à indenização do imóvel destruído pelo fogo.
Mas um contrato de seguro é complexo, tem várias cláusulas que, se não forem cumpridas, comprometem o direito à indenização. A primeira delas exige do segurado a mais estrita boa-fé na contratação do seguro. Ele deve informar tudo que lhe é perguntado pela seguradora, além de franquear o local para uma eventual inspeção. Se a seguradora deixa de inspecionar o risco ou de perguntar sobre o material usado na construção e decoração, equipamentos de combate a incêndio e licenças de funcionamento, ela aceita o seguro no estado em que se encontra, ou seja, ela não pode invocar uma destas situações para não pagar a indenização.
Outra cláusula obriga o segurado, durante a vigência do seguro, a informar a seguradora sobre toda alteração significativa do risco originalmente aceito. No caso concreto, se a reforma com a instalação de espuma inflamável no teto não foi informada para a seguradora, esta seria a condição que permitiria a ela declinar a indenização. O risco aceito teria sido agravado sem consentimento dela e sem a adequação do prêmio à nova realidade.
Os danos a terceiros são passíveis de cobertura de seguro através das apólices de responsabilidade civil. O seguro de responsabilidade civil brasileiro oferece cobertura para danos materiais, corporais e morais.
No incêndio em Santa Maria os prejuízos são decorrentes da morte e dos danos corporais de centenas de pessoas, acrescidos dos danos morais que atingiram outras centenas de pessoas afetadas diretamente pela tragédia.
Em princípio, os danos a terceiros causados por um incêndio estão cobertos na garantia básica do seguro de responsabilidade civil estabelecimento comercial, que é a garantia da existência e funcionamento da empresa.
Ocorre que, mais uma vez, trata-se de contrato complexo, que tem cláusula que determina que o seguro paga indenizações por ações involuntárias do segurado. Além disso, são excluídos da garantia atos contrários à lei ou que agravem o risco por ação ou omissão do segurado.
Em função do até agora apurado no Rio Grande do Sul, mais uma vez, apesar da garantia existir, o segurado perde o direito à indenização. Ele contrariou a lei permitindo o ingresso de pessoas em número maior do que o autorizado. E ele agravou o risco, aumentando as chances de sinistro, por ter mais frequentadores do que o número adequado ao local.
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