Desvalorização delicada
Originalmente publicado no jornal Tribuna do Direito.
por Antonio Penteado Mendonça
Ao longo do último ano, o real sofreu uma desvalorização próxima de 50% em relação ao dólar. A primeira consequência disso é que o Brasil e os brasileiros ficaram 50% mais pobres, ou seja, o valor do patrimônio tangível nacional despencou, colocando as ações, os imóveis e outros bens na prateleira das liquidações e grandes ofertas internacionais.
A análise da situação brasileira poderia se estender por mais três ou quatro artigos, todos com viés negativo, num crescente apavorante, capaz de fazer as pessoas de bem se questionarem se não é o caso de mudar de país. Mas não é caso, mesmo porque o tema do artigo já é suficientemente complicado e coloca o patrimônio de várias empresas em cheque, no caso da ocorrência de um incêndio de grandes proporções em suas instalações.
De acordo com as regras internacionalmente aceitas para seguro de incêndio, o segurado deve contratar este seguro tendo como risco máximo possível o valor total real dos edifícios e seu conteúdo na data da ocorrência do sinistro. É com base neste número que a seguradora calcula o prêmio. No caso do valor ser maior do que o real, a seguradora devolve o prêmio cobrado a mais. No caso de ser menor, a seguradora reduz o valor da indenização, na proporção da diferença a menos.
Isto acontece porque o seguro de incêndio é um seguro proporcional. Vale dizer, há uma relação direta entre o valor segurado e o valor real do bem. Quando esta proporção não é respeitada, a seguradora aplica uma cláusula da apólice chamada cláusula de rateio, pela qual o prejuízo é rateado, proporcionalmente ao prêmio pago, entre ela e o segurado.
Como o contrato de seguro é baseado na mais estrita boa fé, para que o segurado não seja penalizado por eventual oscilação dos preços dos bens segurados, existe outra cláusula que pode ser contratada por ele, chamada cláusula de rateio parcial, pela qual o seguro admite uma variação para menos da importância segurada, sem que aconteça a incidência do rateio em caso de sinistro.
Em tempos sem crise, este colchão é suficiente para garantir ao segurado o pagamento do valor da indenização sem qualquer tipo de penalização em virtude da variação dos preços. Mas num momento como o atual, a cláusula de rateio parcial é absolutamente insuficiente e pode levar uma empresa, que quando da contratação do seguro, seguiu as regras e contratou corretamente, a receber menos da metade do valor dos bens atingidos pelo fogo.
Os valores das apólices de incêndio brasileiras são normalmente grafados em reais. Tanto faz se os bens foram adquiridos em moeda nacional ou moeda estrangeira, para efeito de seguro, prevalece na apólice o real, fazendo-se a conversão do valor do bem adquirido em moeda estrangeira de acordo com o câmbio do dia.
Ora, ao longo do último ano, o país atravessou – e ainda atravessa – um processo de desvalorização acelerada da moeda. Isto faz com que o preço em dólar de um equipamento adquirido um ano atrás se mantenha o mesmo na moeda norte-americana, mas enfrente uma defasagem de mais de 50% em reais. Ou seja, os valores atuais, para efeito de seguro, em caso de sinistro, levariam à aplicação da cláusula de rateio, ainda que o segurado tenha contratado a apólice com os valores corretos à época da realização do seguro.
A questão que se coloca é: como fica a boa fé? No momento da contratação do seguro, os valores informados estavam corretos. Será que é justo penalizar quem contratou respeitando as regras em função de uma crise para a qual ele não contribuiu?
O tema poderia dar margem para discussão não houvesse artigo específico do Código Civil determinando que o segurado é obrigado a informar a seguradora sobre fatos que alterem significativamente o risco durante a vigência da apólice. Não há como dizer que uma oscilação cambial de 50% contra o real não é um fato significativo para um contrato grafado em reais que garante parte dos bens com preço em dólar.
Assim, a única forma do segurado se proteger contra esta situação é rever o valor em reais dos bens segurados, tomando as providências necessárias para atualizá-lo e assim não correr o risco de, além de receber muito menos do que o valor real, ainda por cima não ter condições de comprar os equipamentos novos para repor os destruídos pelo incêndio. Vale salientar que a correção dos valores gera o pagamento de prêmio extra, proporcional à atualização.
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